Cavalgar da praia até a sede da fazenda onde fica a pousada da Ilha do Caju foi só o começo do choque de natureza a que eu e a minha passageira-que-dorme-com-o-guia Tati seríamos expostos durante os três dias que ficamos lá.
A Ilha do Caju é selvagem! Mas nem sempre foi assim tão selvagem. Ela já foi mais explorada do que é hoje quando na virada do século XX era explorada como fazenda de gado e bem antes ainda, na fase áurea da carnaúba que atraiu milhares de europeus para este canto do Brasil. Aquele foi o tempo em que o “petróleo” jorrava do Piauí e Maranhão!
Hoje, a ilha é integralmente uma reserva ambiental privada onde delicados ecossistemas de manguezais, dunas, campos alagados e matas são preservados.
A ilha do Caju é uma propriedade particular. Sim, tem dono, mas o dono cuida do local e isso me deixou mais tranqüilo. Aliás, é uma dona, Ingrid Clark, a simpaticíssima e falante proprietária da pousada da Ilha do Caju e de toda a ilha propriamente dita, compreende a riqueza do patrimônio que herdou. Ela recuperou a pousada, cuida para que a ilha seja mantida preservada, promove o estudo e recebe pesquisadores e estudantes interessados em descobrir e cuidar das espécies do Caju.
Enquanto os cientistas e estudantes acampam na praia e pegam carona nas voadeiras fretadas pelos turistas para chegar até lá, os hóspedes ficam instalados em charmosos chalés onde não há ar-condicionado, nem TV ou água quente, mas a cama é gigante e o colchão e os travesseiros são melhores do que muito hotel bacana por aí.
Este lugar é um parque temático para eco turistas graduados, ambientalistas e radicais defensores da natureza em geral que disponham de algum dinheiro. A combinação isolamento + conforto não é muito barata, uma diária não sai por menos de R$ 180,00, sem os passeios na ilha.
É uma delícia curtir o isolamento… como foi bom saber que por 3 dias, o mundo poderia acabar e nós não seríamos informados. Como foi gostoso saber que éramos os únicos hóspedes daquele paraíso e que ninguém iria nos incomodar ali. O fato de estarmos numa ilha ajudou a criar a sensação de que estávamos desembarcando em um outro tempo, mais ou menos uns dois ou três séculos atrás quando existiam ainda muitos recantos para se descobrir na nossa costa. Foram três dias acordando e dormindo com a natureza. Não precisávamos de relógio para nada, acordávamos quando o sol nascia, dormíamos quando o sol baixava, um pouco antes da revoada dos guarás…
O legal é que você não precisa dormir em barraca, ficar sem tomar um bom banho ou comer mal para curtir tudo isso. A pousada é bem confortável. Como estávamos sozinhos, todos os 10 funcionários estavam ali em nossa função. Os horários em que os funcionários acordavam, montavam o café da manhã, o almoço e o jantar eram determinados pelos nossos passeios, no nosso horário de acordar, de passear de cavalo, de ver a revoada dos guarás, do cochilo da tarde, etc. O tipo do bolo do café da manhã, os pratos do almoço e do jantar, o horário, tudo estava em função do nosso gosto, do nosso paladar, fomos os donos da fazenda por 3 dias! Quando você vê o isolamento do lugar, você entende que não é muito barato manter tudo aquilo. O custo alto faz algum sentido.
Num lugar tão isolado e sem outros hóspedes, passamos muito tempo em contato com os funcionários. Sim, porque a moça que limpa o quarto é a que ajuda a preparar o pão no café da manhã e esposa do rapaz que te leva como guia nos passeios… Por tudo isso, adoramos o contato com o pessoal da ilha, é uma delícia ficar na rede depois do jantar batendo papo com eles. A Tati ajudou a fazer o pão que comemos no café da manhã no dia seguinte. Fomos todos para a cozinha! Como é diferente a vida e a rotina de pessoas que vivem em função e no ritmo da natureza. Eles também são muito curiosos sobre a nossa vida na cidade grande. Boa parte dos hóspedes é estrangeira e por isso não é com todos os hóspedes que eles conseguem se comunicar. Os brasileiros, quando vão ao Caju, acabam não gostando da rusticidade do lugar. Os estrangeiros adoram!!! No dia em chegamos, partiam duas curitibanas que odiaram o lugar. Nós odiamos elas!!!! Ainda bem que elas sumiram logo.
Eu preciso lembrar você que lê este relato de que você precisa estar muito preparado para visitar a Ilha do Caju. Se você ficar apenas um dia, não vai dar tempo de perceber o lugar especial em que você desembarcou, se você não for com o espírito certo de aventura, uma boa dose de bom humor e bem equipado seguindo as instruções do pessoal, você não vai gostar!!!!! E é por essas e outras que é muito difícil conseguir chegar à Ilha do Caju.
Não pense que a pousada viva lotada, nem que é tão difícil chegar lá a partir de Parnaíba, mas é que é difícil convencer a equipe de Ingrid Clark de que você está pronto para conhecer um lugar tão selvagem. É quase como se você mandasse um e-mail solicitando a reserva e eles respondessem: “Tem certeza?”
Sim, eles querem ter certeza de que você sabe onde está se metendo. Quando você manda um e-mail solicitando uma reserva, eles avisam que vão pedir o adiantamento de 100% e que só devolverão se você avisar com 30 dias de antecedência. Eles ainda te mandam uma lista de dicas e recomendações de 7 páginas que precisa ser assinado pelo hóspede, mais um check list com itens que devem ser levados e adquiridos em lojas de esportes e aventura, tipo Decathlon. Sério, eles te avisam tudo, até que vai ter uma baby perereca no seu banheiro, que existem bichos não catalogados, que não tem soro antiofídico, que tem mosquitos, moscas, marimbondos, cobras, não há TV, pode chover forte e alagar parte da ilha, não há música, não há telefone, não há como ser contactado, o acesso em emergências é limitadíssimo, etc, etc, etc. São mais de 50 instruções. A Ingrid disse que toda vez que ouve uma reclamação de algum hóspede surpreso com alguma peculiaridade do Caju, ela adiciona à lista o item comentado. As dicas estão no site. É só conferir.
Quando desembarcamos na ilha do Caju e vimos os cavalos nos esperando para nos levar até a casa sede da fazenda onde fica a pousada, eu demorei a acreditar que aquilo era verdade!! Vamos esperar um pouco, o jipe vai aparecer… Que nada!!!!
Havia um carro na ilha, um único jipe e havia gasolina, o carro não estava quebrado, o único motivo pelo qual nenhum dos funcionários da ilha não havia ido nos buscar era porque nenhum deles era capaz de ligar e guiar um jipe pela trilha até a praia. Caramba!
Carteira de habilitação nesses lugares é diploma universitário! Motorista é profissional altamente qualificado por essas bandas.
Dá para entender o motivo que levou o funcionário motorista a desistir do emprego na Ilha do Caju. O isolamento ali que é programa para turista, vira um martírio para quem não tem o perfil correto para trabalhar por lá. Felizmente, muitos têm. Dos 10 funcionários que conhecemos na pousada, todos gostam muito de viver lá e claro, sentem muita falta do continente de tempos em tempos. A gerente da pousada é uma moça de 22 anos, maduríssima. Ela comanda os outros funcionários e gerencia os mantimentos, os passeios, sabe lidar com os animais. Ela toma conta de tudo é o braço direito de Ingrid na ilha.
Fiquei surpreso em saber de um rapaz que fazia as vezes de guia, tratador de animais e garçom que ele estava feliz por ter se mudado o Caju porque lá ele finalmente havia encontrado o sossego e segurança. Ele tinha 23 anos quando estivemos lá. Você pode achar que ele havia se mudado do Rio ou São Paulo para lá, mas ele é originalmente de uma cidade do interior do Maranhão, não tão longe dali. Lá na cidade dele, ele dizia que não tinha tranqüilidade ou segurança! Como assim? Mais um choque de realidade para a gente, a maior parte dos funcionários vieram de lugares do interior do PI e MA onde não existe ordem, nem lei e qualquer briga num arrasta-pé pode terminar em sangue e ninguém fica nem sabendo ou dando conta de nada. Coisas do Brasil que não se vê no Jornal Nacional.
Não há rádio, não há TV, não há telefone, não há água quente (não precisa), não há celular. Há um rádio para comunicação com o continente que também é utilizado para acessar a internet, a única forma de contato com o mundo exterior. O programa dos moradores-funcionários da pousada é dormir na praia e passar a noite catando caranguejo. Ver o sol nascer, cantar.
O transporte de Parnaíba até lá não é freqüente, é caro, mas funciona. A cada dois dias, mais ou menos, chega um barco com mantimentos para suprir a despensa da pousada, o combustível do gerador… O barco também leva e traz toda a roupa de cama e banho da pousada que é lavada em Parnaíba. O lixo produzido na ilha é todo levado para Parnaíba. Tudo precisa ser planejado para não desperdiçar os mantimentos.
Por isso que eles pedem 100% das reservas antecipadas. Não é a toa que eles precisam ter certeza de que você vai mesmo e de que vai gostar. A Ingrid disse que os brasileiros são os que menos apreciam a Ilha do Caju. Americanos e europeus adoram o que para eles é quase o cúmulo do exotismo. Têm portugueses que passam a lua de mel lá. Aí já é demais, faz tanto calor que “aquilo” fica até um pouco comprometido 😛
Dos passeios que fizemos, os mais gostosos foram as caminhadas à praia para ver a revoada dos guarás vermelhos. No caminho, cobras, rãs e muitos caranguejos vermelhos que supostamente deram a cor aos guarás, seu principal predador.
Um passeio pelos ecossistemas do Caju é bem longo e super cansativo. Nós nos fantasiamos de Indiana Jones e sob um sol de 35º graus, lá estávamos de Kit-Decathlon: camisa comprida e calça para não que não fossemos atacados pelos mosquitos e pudéssemos nos proteger do sol. Passamos pelos campos alagados, pela mata, pelo manguezal. Subimos as dunas puxando os cavalos e chegamos no mar. Cavalgamos pela beira do mar, na face Atlântica do Caju até o ponto em que nosso jipe nos resgataria, mas não sem antes tomar um refrescante banho de mar em nossa praia exclusiva. Que delícia! Sem roupa de banho apropriada, mas mortos de calor, entramos no mar com nossas roupas de baixo… Cena presenciada apenas pelos guarás.
As minhas fotos mais bonitas do Caju e do Delta estão todas em filme. Eu teria que desmontar meu mural para fazer o scan, mas eu achei fotos profissionalíssimas que serão capazes de convencer a qualquer um a mover montanhas para ir à Ilha do Caju. Veja no site do Alex Uchoa lindas fotos da região. O álbum desse cara é demais!!!
Fiquei com saudade da Ilha do Caju! Este post ficou tão grande que vou precisar de mais um para chegar a Jeri, mas ok, esta viagem não é mesmo para ser feita com pressa nenhuma!